A Comuna Resist
Na metade dos anos 90 houve uma grande migração de punks de outros estados para viver aqui na Cidade Sorriso. Veio gente de Minas, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, etc...
O caótico Squat Kaazaa ficou pequeno perante essa demanda e as várias diferenças individuais fizeram com que alguns grupos com afinidades comuns locassem alguns espaços próprios para viverem em comunidade.
No bairro curitibano do Centenário, subúrbio da zona leste da cidade, coexistiram duas.
Uma delas foi a "Comuna Resist" (se não estiver errado ela existiu entre 1996 e 1997), foi alugada do pai de um punk daqui, o Giva. Outra foi a Cazé (de "Casa do Zé", na periculosa Vila Autódromo) cujo dono era um camarada um pouco mais velho, o Zé, que colava com os punks.
Esse era um detalhe importante, os punks ferrados, sem emprego fixo e mal vistos, normalmente pela marginalidade cultural, precisavam de um contato amistoso para poder locar um imóvel diretamente com o dono, evitando a inviável burocracia imobiliária que é normal, porém chata, para qualquer cidadão comum.
A Comuna era inicialmente para ser uma morada anarco feminista, apenas garotas punks se agilizaram para conseguir seu próprio espaço. Mas elas deixaram bem claro que o motivo não era segregar ninguém da cena punk! Queriam apenas um espaço acolhedor onde pudessem ser livres para desenvolver seus projetos e ideias.
Inclusive pessoas de outros gêneros eram sempre bem vindas nos encontros, eventos e shows que lá ocorreram... e num período posterior bem próximo, os moradores se diversificaram neste quesito e vários outros companheiros acabaram indo morar lá também.
Este fato de ser uma comunidade feminina fez com que alguns colegas ironizassem e inventassem o debochado apelido de "Casa das Capivaras", isso deixou as moradoras revoltadas, principalmente por conta do pensamento antisexista que regia a comuna. Esta alcunha jocosa acabava dando espaço para uma interpretação equivocada, indo justamente para o lado oposto da imagem de autonomia e resistência que queriam transmitir.
O nome "Comuna" era (ou talvez seja ainda) um dos vários termos figurativos comumente utilizados no meio punk para nomear as casas que alugavam, não tão amplo espacialmente, mas essa gíria tinha referência direta ao termo político de "comuna" como uma "comunidade autogestionada, onde os membros vivem e trabalham juntos, geralmente com ideais de igualdade, autonomia e cooperação."
A diferença disso e de uma casa padrão fica principalmente na ideologia de coletivismo e na visão do espaço como um ambiente de reflexão coletiva sobre as dinâmicas internas. Não é uma casa com a figura de um chefe de família, ou uma morada comum coletiva com ênfase ao puro individualismo... Uma comuna punk, uma ilha urbana desligada do sistema formal, é uma maneira mais realista de tentar se organizar e viver próximo da ideologia anarquista. Uma experiência isolada das normas e estruturas da sociedade tradicional.

Foto: Comuna Resist 1996 - Fabiano Mendigo (Floripa), Lobão (SP), Ângela (Ctba) Rodolfo (BH), Cris (CTBA), Jarrona (SP) e Maria (SP).
Panorama do espaço
A Comuna era uma casa de uns 5 ou 6 cômodos espaçosos, com uma arquitetura irregular e pouco planejada. Tomava todo o fundo do grande lote. Num lado, após a sala de entrada, havia um grande quarto escuro (sem nenhuma janela, parecendo uma alcova) e tinha um terreno amplo na frente. Ficava na Rua Luiz França nº 2478, hoje o espaço está mais elitizado e é ocupado por esses dois sobrados aqui:
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Visitando a comuna
Sair do Fazendinha para ir até lá era um relativo esforço. Chegávamos no sábado e retornávamos apenas no final do domingo. Pois o longo deslocamento durava quase duas longas horas.
Já para ir a partir do centro era tranquilo, bastava embarcar no Expresso Articulado Centenário e descer no ponto que ficava perto de onde hoje é a Estação Tubo Teófilo Ottoni, tomar uma no antigo Bar do Becker e andar umas 3 ou 4 quadras para chegar na bagunça.
Falando do ponto de vista de um visitante, não de um residente... Ali a gente trocava muitas ideias, bebia, se divertia muito e quando fosse conveniente, dormia em algum colchão pelo chão. Explicando dessa maneira não aparenta que era muito confortável, mas para o nosso padrão pouco exigente era bastante hospitaleiro. As pessoas dali tinham uma convivência harmônica numa atmosfera diferente e receptiva, por isso eu gostava muito de ir lá. Era uma galera ativista e mais equilibrada, mas com espaço para zoeira.
Dávamos eventualmente uma desviada e caminhávamos até a casa do Zorba ali no Conjunto Mercúrio, para passear e trocar umas ideias com os camaradas da Vila dele. Eram uns 2 km de caminhada numa região variada, onde essa meia hora de jornada poderia ser uma incógnita. Era comum ocorrer algo inesperado, desde levar uma geral a polícia ou arrumar alguma treta...
A história é complexa e tem uns nuances que lembram um filme de terror trashera, a treta começou assim:
A Polaca, uma punk da comuna que havia andado com um pessoal da cena metal no início dos anos 90, conhecia alguns dos sujeitos e eles acabaram aparecendo por lá. Inicialmente simpáticos, convidaram os punks para irem na casa dos Blacks, pois iria rolar o ensaio de uma banda. Tá, foram. Em meio à bebedeira habitual notaram que havia uma bandeira enorme com um símbolo nazista pendurada numa parede. Nesse momento caiu a ficha e pensaram: “Em que merda de lugar que a gente foi se meter?”
Ao se prepararem para sair fora dali, a situação foi ficando ainda mais bizarra, um dos caras apareceu mostrando um saco todo ensanguentado. Dentro estava um animal morto.
Como se já não fosse tão inconveniente descobrir que eles eram adeptos dessa ridícula prática religiosa e ritualística de sacrifício animal, viram que o bicho vitimado era a gata "Podrona", o pet estimado da comuna!
Gritava o Rodolfo puto... pegou o cara e começou a dar um pau nele, dentro da própria casa do maluco. Depois disso, o clima só piorou.
Começaram a surgir vários problemas com essa galera, os punks constantemente eram ameaçados na rua, eles chegaram a tacar pedra na casa... Teve um dia em que tentaram acertar uns tiros no Beterraba e na namorada dele. Eles só não foram atingidos porque conseguiram sair correndo. Lembro ainda dos buracos de bala que chegaram a furar a jaqueta do Betê...
A tensão ficou insustentável. Isso foi um dos motivos que os levou a pensar em sair dali.
Nesta época havia um jornal comunitário no bairro. O editor até colava lá no espaço, curtia as ideias e pedia para o pessoal escrever sobre anarquismo, feminismo, punk... A galera da Comuna chegou inclusive a ter uma coluna fixa por um tempo.
Numa dessas edições, precisaram escrever um texto denunciando os black metal da região. Pois tinha um morador ali perto que criava cabras e um bode seu sumiu, iniciando um boato entre alguns vizinhos que tinham sido os punks. A matéria explicava o que era os black metals, que esses caras do bairro eram nazistas, e que esse tipo de atitude de matar animal eram eles que faziam. Os punks da Comuna, ao contrário, eram até vegetarianos e totalmente contra isso..
Todo ciclo tem um fim
Não sei ao certo quanto tempo durou. Lembro que no final da presença dos punks ali, início de 1997, o pai do Giva já havia vendido a propriedade e ficaram uns punks remanescentes morando lá um tempo sem pagar aluguel.
Eu fui lá na última semana para resgatar uma bateria que havia sido abandonada pelo "dono", um colega punk que tinha virado crente e sumido do mapa... (Sim! Esse tipo de contradição ocorre de verdade e já vi bastante). O pessoal disse que se ninguém fosse buscar a batera, ela seria demolida junto com o que restava da casa, pois infelizmente não tinham para onde levá-la.
Quando cheguei o clima era meio depressivo e a casa, que em outros tempos teve tanta energia, onde curtimos tanto... estava parecendo um ambiente de final de festa, ou final de guerra.
Só havia metade da antiga comuna, o terreno havia sido repartido em dois e no lado direito já era erguido uma nova obra no estilo sobrado.
Lembro que fiquei um pouco triste ao ver aquilo. Me conformo sabendo que na verdade nenhum espaço é definitivamente nosso! Mesmo a ideia de propriedade privada que o capitalismo nos impõe é algo figurativo, uma demarcação de uma terra que já estava aqui antes da existência de qualquer ser humano, que continuará lá depois que a raça for extinta... enfim.
Fotos
Nessa época eram mais raras, pois tudo era analógico e não tão prático como hoje. As que posto abaixo são numa tarde calorosa e decadente antes de uma festa que rolou por lá e tenho algumas vagas lembranças. Olhando estas fotos posso sugerir que tocaram o Nervoróticos, Criaturas de Morfeu, talvez o Quebra de Padrões e também umas bandas da Comuna que não lembro os nomes. Esse aqui acima sou eu, lendo uma revista na sala de entrada, se liga nas frases nas paredes que remetiam justamente o ideal contra o sistema de autoridade masculina."Fuck the Patriarchy!" - "Pela livre opção sexual" - "Anarco Feminismo" - "Queer Punx" - "Viva la Insumisíon!"
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Banda Nervoróticos passando um som antes do evento, em uma das suas tantas formações. Essa é a bateria da marca "Pinguim" que foi abandonada. Anos depois o cara "descrenteou" e reivindicou a posse dela para si novamente. Cedi com tremenda frustração, pois foi num momento que ela era útil nos nossos ensaios.
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Quando eu disse que a gente dormia num colchão pelo chão eu não estava brincando. Este inconveniente clique foi tirado na manhã de extrema ressaca pós show.

Essa mina de Joinville era irmã do camarada Toninho, a criança era filho do China.
No canto direito Aranha (RIP)

Em pé: Jacaré, Pompom, Duque (RIP) e Aranha (RIP).
Sentados: Fábio (Renegados), Armando (LAI) e Moska (Renegados).
Na bateria Bisonho (Quebra de Padrões)
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Clique aleatório tirado acidentalmente. Esta Fender Stratocaster 1989 é a mesma guitarra que eu toco até hoje no LAI.
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Residente da Comuna, China.
Pelo jeito o fotógrafo já estava totalmente alcoolizado, pois errava todas as cenas e não registrou depois nenhum momento do show.
Zines
Zine anarco punk produzido na Comuna pelo morador Romulo.
Mais um zine produzido na comuna
Esse relato é pra registrar o que vivemos, pra contar a quem não viveu e, quem sabe, pra inspirar outros a criarem seus próprios espaços livres, mesmo que por um tempo. Com a possibilidade de utilizar estes exemplos como informação, a fim de tentar mitigar os erros que surgem durante qualquer experiência.
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